O sociólogo inglês T.H. Marshall, autor do primeiro livro sobre o tema da cidadania, - CLASSE SOCIAL, STATUS E CIDADANIA, de 1949 - demonstra como os diretos que compõem a cidadania foram nascendo e se firmando ao longo de três séculos: os direitos civis no Século XVIII, os direitos políticos no Século XIX e os direitos sociais no Século XX.
Diferentemente do adulto que pode e deve exercer seus direitos - direito de votar, de expressar opiniões, de ir e vir, de se filiar a associações ou de escolher uma profissão - a criança tem o "direito de ser obrigada a estudar". Evidentemente, a criança não sabe que tem esse direito, e cabe a seus responsáveis - ou ao Estado - garantir que ela seja obrigada a estudar. Pode-se dizer, numa analogia, que jovens que estão concluindo o ensino médio tem o direito de serem incentivados a continuar estudando.
É exatamente esse o objetivo central deste texto, elaborado para reforçar a energia intelectual dos alunos que em breve irão enfrentar o desafio da escolha de uma faculdade e de uma carreira profissional. De início, convém enfrentar uma questão terrível: por que os jovens - salvo exceções - não gostam de estudar? Sabemos que existem milhares de razões individuais e/ou familiares, como falta de tempo, ambiente familiar tumultuado, falta de dinheiro, problemas de saúde, entre tantos outros. Porém, existe uma explicação geral para essa ausência de gosto pelos estudos, qual seja, jovens - e adultos também! - não gostam de estudar porque não aprendemos a tirar prazer do ato de adquirir conhecimento. Desde cedo somos levados a acreditar que a felicidade mora lá fora, na praia, no sol, no carnaval, no futebol ou na balada noturna. Estudar, por sua vez, é encarado como um pesado fardo do qual precisamos nos livrar o mais rápido possível.
Na origem dessa percepção está um outro problema que merece ser abordado, que é a ausência de incentivo para a busca do conhecimento. O incentivo dado pelo professor em sala de aula é, evidentemente, imprescindível, mas é igualmente importante o incentivo que vem de conversas com familiares e amigos. Uma vez que entre nós, brasileiros, é pouco difundido o hábito de conversar sobre "assuntos da escola", os temas analisados em sala de aula costumam permanecer restritos àquele ambiente. Embora alguns campos do conhecimento não sejam adequados para conversas entre amigos, - como geometria, química ou matemática - felizmente boa parte da matéria dos livros e das aulas é constituída de temas que fazem parte de nosso cotidiano, embora não estabeleçamos articulações entre os conteúdos da História, da Geografia ou da Literatura, por exemplo. É a nossa vida concreta. Tudo se passa como se apenas falar sobre futebol ou sobre novelas de televisão fosse "natural", e não nos damos conta de que dominamos porções de conhecimento específico sobre cada um desses temas, sem o que não haveria área comum para o desenvolvimento da conversa. Da mesma forma como cada um de nós temos um quantum razoável de conhecimento sobre a historia do Brasil, mas dificilmente alguém toma a iniciativa de conversar, por exemplo, sobre a escravidão, ou sobre a economia cafeeira paulista.
Aproximadamente metade dos alunos que estão se preparando para ingressar na faculdade irá escolher cursos das áreas de exatas ou biológicas. No entanto, a área de humanidades tem uma propriedade que deve ser aproveitada por todos os alunos, sejam eles futuros historiadores ou futuros engenheiros: a ênfase na linguagem, tanto no que diz respeito à pratica de redação, quanto na tarefa de ler e interpretar o texto escrito. Esse foco das disciplinas da área de humanidades deve ser aproveitado por todos os alunos, não apenas porque a redação tem peso decisivo nos exames de acesso às faculdades de um modo geral, ou porque sem desenvoltura na leitura e na interpretação ninguém é capaz de compreender os enunciados de questões de matemática, física, ou de quaisquer outras disciplinas. Mas, sobretudo, porque a linguagem é instrumento de desenvolvimento da consciência e do raciocínio. Além disso, a linguagem é o plasma da vida em sociedade, e todas as profissões são exercidas nos marcos da sociedade, com suas conquistas e suas injustiças.
Aqui entra o papel da Literatura. É preciso dizer com todas as letras que ignorar a tradição literária de um povo tem conseqüências deletérias, pois não é possível formar um bom químico, por exemplo, sem uma dose de Machado de Assis. A literatura não apenas expressa quem somos nós, povo brasileiro, como situa os traços de personalidade de cada um de nós - e dos personagens - numa chave universal de humanidade. Um dos mais brilhantes intelectuais que o Brasil já produziu, Antonio Candido, no texto "Direito à Literatura", enfatiza um mérito da Literatura que geralmente passa despercebido: a obra literária é um fator de ajuda na organização de nossos pensamentos e de nossos sentimentos.
Uma vez que o texto literário nos ajuda na compreensão da sociedade e aprofunda nosso entendimento das relações pessoais, a convivência com as obras literárias pode ser importante instrumento na conquista da "inteligência emocional", uma das características pessoais mais valorizadas pelo mercado de trabalho, que nada mais é do que a capacidade de conviver com pessoas diferentes e de absorver decepções de modo civilizado e não auto-destrutivo. A obra literária pode ser uma aliada importante para o profissional de nossos dias, que não pode cogitar parar de estudar, porque a Literatura mantém a mente preparada para a inclusão de novos conhecimentos, pois "ela nos organiza, nos liberta dos caos e nos humaniza", para usar as palavras de Antonio Candido.
Apesar de toda apologia que se possa fazer à ampliação do conhecimento, basta observar a realidade para saber que estudar não garante automaticamente um futuro profissional maravilhoso. Porém, todo mundo da área da educação sabe que há uma relação direta entre escolaridade e nível de renda, conforme já foi comprovado por diversas pesquisas. Independentemente da profissão, o salário - ou a renda, caso se torne um profissional liberal ou um empresário - estará relacionado ao número de anos passados na escola e, é claro, aos cursos de fato concluídos. Essa relação entre escolaridade e renda é verificável até mesmo entre trabalhadores de ocupações idênticas: um caixa de banco que estudou 18 anos ganha mais do que um colega que estudou 16 anos. Entre profissionais que concluíram o ensino superior está igualmente presente essa tendência: um médico que, depois de formado, fez cursos de especialização tem renda mais alta do que um colega que parou de estudar quando recebeu o diploma. Não por acaso, a reputação de "médico de ricos" - equivalente, é claro, à reputação de excelente médico - é construída a partir de títulos obtidos formalmente na universidade, como mestrado ou doutorado. Além da renda propriamente dita, quase todas as realizações que podem ser extraídas de uma carreira profissional dependem da quantidade de anos investidos nos estudos e dos diplomas obtidos. Que fique claro, portanto, que sem educação formal não existe possibilidade de sucesso profissional.
Resta tentar responder à segunda parte da pergunta que relaciona estudo e felicidade. O processo de ampliação do conhecimento habilita cada um a enxergar o mundo e a si próprio com olhos críticos, pois fornece subsídios para a análise apurada das relações sociais que determinam o lugar de cada indivíduo na sociedade. A compreensão dos diversos fatores que compõem a estrutura social permite que o jovem do ensino médio - ou de qualquer estágio da escolarização - se situe de maneira realista diante de uma das perversidades da sociedade contemporânea, que é a integração social pelo consumo. Como a ditadura do consumo nunca pode ser plenamente satisfeita - há sempre um celular novo, um tênis mais bonito ou outro objeto de consumo - a frustração constante pode levar à diminuição da auto-estima e à erosão de relações sociais e familiares. A ampliação do conhecimento facilita a tarefa de desmontar as armadilhas do consumismo, tarefa essa da qual ninguém está liberado, nem mesmo os muito ricos, como fica evidente nos exemplos de milionários que perderam tudo.
O posicionamento crítico diante da realidade social não significa diminuir a capacidade de sonhar. Os sonhos - de realização profissional, de bem-estar material, ou de felicidade afetiva - são o ponto de partido necessário de um projeto a ser perseguido. É claro que esse duplo exercício mental - um olho na realidade e um olho nos projetos de vida - é constantemente submetido a provações de toda ordem. De um lado, os supostos exemplos de jovens que se tornaram muito ricos com o futebol ou com a música, por exemplo. De outro, as dificuldades concretas vivenciadas pelos jovens e suas famílias, e que muitas vezes são motivos reais de abandono ou de adiamento de projetos. Entretanto, o desenvolvimento pessoal, resultado da ampliação do conhecimento, poderá assegurar a capacidade de se manter, de modo realista, na perspectiva da construção de um projeto profissional.
Para encerrar com o mesmo autor, T.H. Marshall define a cidadania como um "conjunto formidável de direitos", no qual está o "direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade". E os padrões que prevalecem na sociedade, sabemos todos, são aqueles de valorização absoluta do conhecimento. Quem esta impedido de participar da herança social devido a insuficiências da formação profissional não pode conquistar a felicidade. Em outros termos, estudar é imprescindível para ser feliz.
Por Roseli Martins Coelho* * Roseli Aparecida Martins Coelho é professora da cadeira de Teoria Política da FESPSP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo). Doutora em Filosofia Política e Mestre em Ciências Sociais.
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